A Grande Mãe 

As concepções religiosas do tronco tupi eram henoteístas, concebendo a existência de uma Divindade Suprema, um Divino Poder Criador (às vezes chamado de Tupã) que se manifestava por intermédio de Guaracy (o Sol) e Yacy (a Lua) que, juntos, geraram Rudá (o amor) e, por extensão, a humanidade

O culto a Guaracy era reservado aos homens, que usavam os tembetá, amuletos labiais em forma de T, enquanto as mulheres veneravam Yacy e Muyrakitã, uma divindade das águas, e usavam amuletos em forma de batráquios e felinos, pendurados no pescoço ou nas orelhas.
Guaracy era a manifestação visível e física do poder criador representado pelo Sol. Apesar do astro ser considerado o princípio masculino na visão dualista atual, a análise dos vocábulos nheengatu do seu nome revela sentido diferente. Guará significa “vivente”, e Cy é “mãe”, o que formaria a “Mãe dos seres viventes”, a força vital que anima todas as criaturas da natureza, a luz que cria a vida animal e vegetal. Também em outras tradições e culturas (Como na Japonesa, com a Kami Amaterassu), o Sol era considerado uma divindade feminina, o que nos faz deduzir que, para os nativos tupis, a Vida e a Luz solar provinham de uma Mãe (Cy) que só mais tarde foi transformada em Pai. 

Yacy era a própria Mãe Natureza, seu nome sendo composto de Ya (senhora) e Cy (mãe), “a Senhora Mãe”, fonte de tudo, manifestada nos atributos da Lua, da água, da natureza, das mulheres e das fêmeas.

Cy (ou Ci) representa, portanto, a origem de todas as criaturas, animadas ou não, pois tudo o que existe foi gerado por uma mãe que cuida da sua preservação, do nascimento até a morte. Sem Cy (mãe), não existe, nem pode perdurar a vida, pois ela é a Mãe Natureza, o principio gerador, nutridor e sustentador da vida. Na língua tupi existem vários nomes que especificam as qualidades maternas: Yacy, a Mãe Lua; Amanacy, a Mãe da Chuva; Aracy, a Mãe do Dia, a origem dos pássaros; Iracy, a Mãe do Mel; Yara, a Senhora da Água; Yacyara, a Senhora do Luar; Yaucacy, a Senhora Mãe do Céu; Acima Ci, a Mãe dos Peixes; Ceiuci, a Mãe das Estrelas; Amanayara, a Senhora da Chuva; Itaycy, a Mãe do Rio da Pedra, e tantas outras mães – do frio e do calor, do fogo e do ouro, do mato, do mangue e da praia, das canções e do silêncio. As tribos indígenas conheciam e honravam todas as mães e acreditavam que elas geravam sozinhas seus filhos, sem a necessidade do elemento masculino, atribuindo-lhes a virgindade, o que em outras culturas simbolizava sua independência e autossuficiência.

Outro arquétipo da Mãe Ancestral é descrito no mito amazônico da Boiúna, a “Cobra Grande”, dona das águas dos rios e dos mistérios da noite. Apresentada como um monstro terrível que vive escondido nas águas escuras do fundo do rio e ataca as embarcações e pescadores, a Boiúna ou “Cobra Maria” é, na verdade, a “Face Escura da Deusa, a Mãe Terrível, a Ceifadora”, que tanto gera a vida no lodo como traz a morte, no eterno ciclo da criação, destruição, decomposição, transformação e renascimento. Caamanha, a “Mãe do Mato”, é outro aspecto da “Mãe Escura” que protege as florestas e os animais silvestres, e pune, portanto, os desmatamentos, as queimadas, a captura e matança dos animais e a violência contra a natureza. Pouco conhecida, ela foi transformada em dois personagens lendários: Curupira e Caapora. Descritos como seres fantasmagóricos, peludos, com os pés voltados para trás, às vezes com um aspecto feminino, são os guardiões das florestas, que levavam os caçadores e invasores do seu habitat a se perderem nas matas, punindo-os com chicotadas, pesadelos, acidentes ou até mesmo com a morte.
Nas lendas guarani relata-se a aparição da “Mãe do Ouro”, que surge como uma bola de fogo ou manifesta-se nos trovões, raios e ventos, mostrando a direção da mudança do tempo. Em sua representação antropomórfica, ela torna-se uma linda mulher que reside em uma gruta no rio, rodeada pelos peixes e de onde se manifesta no ar como raios luminosos, ou então surge na forma de uma serpente de fogo, punindo os destruidores das pradarias. Em sua versão original, ela era considerada a guardiã das minas de ouro, que seduzia os homens com seu brilho luminoso, afastando-os das jazidas. Seu mito confunde-se com o do Boitatá, uma serpente de contornos fluídicos, plasmada em energia etérea com dois imensos olhos; ela guardava os tesouros escondidos, reminiscência dos aspectos punitivos da Mãe Natureza, defendendo e protegendo suas riquezas.
 A representação atualizada do mito pode ser vista na figura da “Mula sem Cabeça”, metamorfose da concubina de padre, que assombra os viajantes nas noites de sexta-feira (dia dedicado, nas culturas pagãs, às deusas do amor, como Astarte, Afrodite, Vênus, Freyja) e do Teiniágua, lagarto encantado que se transforma em uma linda moça para seduzir os homens, desviando-os dos seus objetivos.

Quanto ao significado esotérico de Muyrakitã, devemos decompor seu nome em vocábulos para compreender sua simbologia feminina: Mura – mar, água; Yara – senhora, deusa; Kitã – flor. Podemos então interpretá-lo como “A deusa que floriu das águas” ou “A Senhora que nasceu do mar”. Esta divindade aquática, considerada a filha de Yacy, era reverenciada pelas mulheres que usavam amuletos mágicos chamados ita-obymbaé, confeccionados com argila verde, colhida nas noites de Lua Cheia no fundo do lago sagrado Yacy-Uaruá (“Espelho da Lua”), morada de Muyrakitã. Esses preciosos amuletos só podiam ser preparados pelas ikanyabas ou cunhãtay, moças virgens escolhidas desde a infância como sacerdotisas do culto de Muyrakitã – vetado, portanto, aos homens. Nas noites de Lua Cheia, as cunhãtay, devidamente preparadas, esperavam que Yacy espalhasse sua luz sobre a superfície do lago e, então, mergulhavam à procura da argila verde. A preparação das virgens incluía jejum, cânticos e sons especiais (para invocar os poderes magnéticos da Lua), além da mastigação de folhas de jurema, uma árvore sagrada que contém um tipo de narcótico que facilita as visões. Enquanto as cunhãs mergulhavam, as outras mulheres ficavam nas margens do lago entoando cânticos rítmicos ao som dos mbaracás (chocalhos). Depois de “recebida” a argila das mãos da própria Muyrakitã, ela era modelada em discos com formato de animais, sendo deixado um pequeno orifício no centro. Em seguida, todas as mulheres realizavam encantamentos mágicos, invocando as bênçãos de Muyrakitã e Yacy sobre os amuletos, até que Guaracy, o Sol, nascia solidificando a argila com seus raios.
Esses amuletos, que ficaram conhecidos com o nome de muiraquitã, tinham cor verde, azul ou de azeitona e eram usados no pescoço ou na orelha esquerda das mulheres. Acreditava-se que eles conferiam proteção material e espiritual e que podiam ser utilizados para prever o futuro, nas noites de Lua Cheia. Após serem submersos na água do mesmo lago, os amuletos eram colocados na testa das cunhãs e com orações eram invocadas as bênçãos de Yacy e Muyrakitã.

No nível esotérico, profano, o muiraquitã é conhecido como um talismã zoomorfo, geralmente em forma de sapo, peixe, serpente, tartaruga ou de felinos, talhado em pedra (nefrite, esteatita, jadeíta ou quartzito), bem polido, ao qual se atribuíam poderes mágicos e curativos. Foram encontrados vários deles na área do baixo Amazonas, entre as bacias dos rios Trombetas e Tapajós, sendo chamados de “pedras verdes das Amazonas”.

Esta denominação folclórica pode ser uma confirmação do mito das Amazonas ou Ycamiabas, as “mulheres sem homens”, como foram chamadas pelo padre Carvajal, da expedição de Francisco de Orellana, em 1542. Os relatos míticos as descrevem como mulheres altas, belas, fortes e destemidas, longos cabelos negros trançados e tez clara, que andavam despidas e utilizavam com maestria o arco e a flecha para guerrear e caçar. Diz a lenda que elas escolhiam anualmente homens adequados para serem os pais de seus filhos, presenteando-os com muiraquitãs. Outras fontes afirmam que elas usavam ornamentos de pedras verdes esculpidos em forma de animais como objetos de troca com visitantes ou tribos vizinhas. Os missionários atribuíam aos índios tapajós a origem dos muiraquitãs, mas eles eram apenas seus portadores, não os fabricantes, exibindo-os como símbolos de poder ou riqueza, ou ainda como compensação na realização de ritos fúnebres, nas cerimônias de casamento ou para selar alianças e acordos de paz entre as tribos.

Ocultos em mitos, lendas e crenças, existem ainda muitos resquícios das antigas tradições e cultos indígenas. Descartando as sobreposições e distorções cristãs e literárias, poderemos resgatar a riqueza original das diversas e variadas apresentações da criadora ancestral brasileira, Mãe da Natureza e de tudo o que existe, que existiu e sempre existirá. Cabe aos estudiosos e pesquisadores atuais desvendar os tesouros históricos do passado indígena brasileiro, com isenção de ânimo e sem distorções, em uma sincera dedicação e lealdade à verdade original, para oferecer às nossas mentes as provas daquilo que os nossos corações femininos sempre souberam, ou seja, “que a Terra é a nossa Mãe e devemos cuidar dela”

por Patriciatarologasp

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